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De pouco vale revoltarmo-nos contra a injustiça das suspeições e das aparências que tomam o lugar dos factos. O universo político é perseguido desde sempre por essa maldição. Quem não quer ser, terá de cuidar não parecer. E é isto que manifestamente José Sócrates ainda não compreendeu. Só que, para ele, parecer também é ser, pelo menos sempre que lhe convém – e como é abundantemente ilustrado por uma agenda política onde a fantasia da propaganda constitui um manto diáfano para tapar a nudez da realidade. Há mais verdade e autenticidade numa frase de Obama (e vimos como ele mudou, numa semana, o paradigma da política americana) do que em todos os discursos de Sócrates.
A ficção não ilude apenas os incautos que se deixam sugestionar pelo efeito ‘realista’ que eventualmente produz. Poderá também apanhar nas suas malhas o próprio autor da ficção, tornando-o refém dela, uma espécie de arroseur arrosé. Assim, ele acabará por não distinguir o seu imaginário narcísico da realidade concreta que o cerca e de que também faz parte. É um clássico de tipo freudiano.
Outro clássico, este da propaganda totalitária, pretende que uma mentira repetida mil vezes acaba por ser apreendida como verdade. Mas não é preciso cair nos extremos do totalitarismo e no recurso sistemático à mentira – que aos olhos do próprio mentiroso irá também confundir-se com a verdade –, para se escapar à tentação de subordinar a acção política em democracia ao mero marketing da propaganda (onde contam todos os expedientes, incluindo a mistificação da autoria de relatórios atribuídos a instâncias internacionais, como ainda esta semana aconteceu em relação à OCDE).
Também aqui, o que parece, é. O jogo das aparências, artifícios e ilusões gera um mundo imaginário, plastificado, que ofusca a crueza do mundo real neste jardim à beira-mar – ainda há instantes um oásis de tranquilidade, reformas e progresso à margem do caos internacional. Parecer é (era) ser.
É sumamente irónico que José Sócrates, tendo jogado com tanta desenvoltura este jogo do parecer e do ser, se apresente hoje como uma das suas vítimas. Como se uma sinistra conspiração mediática e política tivesse sido montada maquiavelicamente contra ele, através de coisas que parecem mas não são, para assassinar-lhe o carácter.
Admitamos, pois, que, apesar das suspeitas da Polícia inglesa, não há nenhuma ilegalidade, nenhum favorecimento ilegítimo, nenhum pagamento de ‘luvas’ a políticos, mas apenas coincidências fortuitas e infelizes (familiares ou outras) no caso Freeport. Ou que o malfadado caso da licenciatura na Universidade Independente se deveu, também esse, a outras trapalhadas e acasos do destino nos quais o então estudante José Sócrates não terá tido uma intervenção decisiva (além de não poder ser acusado de nenhum acto ilícito, apesar do tratamento de favor de que aparentemente beneficiou). Ou ainda que as suas assinaturas em vários prédios construídos na Guarda na década de 80 são absolutamente autênticas e penhor de uma autoria indiscutível (pese embora a tenebrosa qualidade arquitectónica dos projectos).
O problema é que o cruzamento das coincidências através destes três casos exemplares parece demasiado excessivo para ser apenas ocasional. E lá volta o que parece, é. Mesmo excluindo decididamente qualquer suspeita de ilícito criminal, há coincidências estranhas e situações inexplicadas a mais neste emaranhado de peripécias esteticamente desagradáveis e eticamente duvidosas. Há flagrantes contradições de critérios de actuação política, questões de constitucionalidade controversa, uma insustentável ligeireza nas desculpas e nos álibis, truques e habilidades com um perfume de esperteza videirinha, malhas cozidas com fio demasiado grosso ou, então, uma argumentação tão laboriosa e mastigada que, quando porventura a bota não bate com a perdigota, é sempre salva por providenciais acidentes de memória ou outros do mesmo jaez.
Quase nada disto seria politicamente relevante (embora o caso Freeport o seja indiscutivelmente) se não se desse a coincidência (mais uma) de o protagonista destes affaires ser, actualmente, o primeiro-ministro de Portugal. Aí regressa a maldição do ser e do parecer e da história da mulher de César – e, com elas, poderá pôr-se o problema de Sócrates deixar de ter condições políticas para continuar à frente do PS e do Governo. Para isso, não será preciso sequer uma eventual e pouco provável acusação judicial. O que está aqui em jogo é uma questão de confiança e carácter que, apesar de todos os artifícios e artimanhas, já não é possível continuar a iludir.
O balão Sócrates corre o risco de esvaziar-se rapidamente, entre a pressão da crise interna e internacional e a queda abrupta da sua credibilidade – da confiança e do carácter indispensáveis a uma verdadeira liderança democrática.
Acontece, porém, que Sócrates criou o deserto à sua volta num PS inteiramente amorfo e submisso, enquanto não se perfilham alternativas políticas verosímeis entre as oposições. O problema Sócrates poderá converter-se, assim, e muito mais cedo do que eventualmente se poderia imaginar, num problema nacional. Só que não há ainda resposta para ele.